Por Homero Franco "Mano Terra"
Pesquisador, poeta e escritor - Florianópolis, SC
Não é a primeira e não será a última vez que as sociedades autônomas serão invadidas em seus valores. A prática é antiga. A história de Jesus Cristo está associada à invasão da Palestina pelos romanos. A América foi invadida pelos europeus a partir de 1492. A revolução industrial no século XVII invadiu os sistemas mercantis de quase todo o planeta. A partir de 1945 o Brasil mudou de invasor: foram os Estados Unidos, como beneficiários da nova distribuição dos mercados no após-guerra, que impôs-nos padrões e valores que nunca foram nossos. As grandes redes de televisão, ao privilegiarem determinados tipos de programação cultural (sertanejo, country, axé), invadem as nossas vidas e forçam a adoção de padrões de comportamento e consumo. A globalização, desde o início da década de 1990, é a mais avassaladora campanha de internacionalização do homem.
A quem interessa a modelização, a padronização? Precisa responder? O rock'nrol hoje é um ritmo universal, ao lado do cheesburger, da cocacola, jeans e, pasmem, da língua inglesa. Nunca um único idioma foi tão falado no mundo e nunca uma única moeda (o dólar) foram tão usuais como atualmente. O que significa isso? Precisa responder?
A sistemática ausência e omissão dos governos quanto à cultura, estimula a modelização e a padronização. Não havendo o estímulo governamental, a cultura se obriga a caminhar lado a lado com o lucro, sendo entregue aos mercadores culturais, para quem lucro é lucro, sem nenhum compromisso com os territórios sagrados.
É preciso, também, entender o que seja processo cultural e o que seja tradição. O processo cultural anda mais depressa, se adapta, evolui, acompanha os avanços tecnológicos e filosóficos dentro de uma década. A tradição anda muito mais lentamente. Uma breve adaptação em uma tradição demanda um século. Sempre que adaptada ou alterada dentro de uma mesma geração, deixa de ser tradição.
No caso da chamada cultura gaúcha, precisamos entender o que se passa e o que virá. Há uma parcela da nossa gente que reclama da excessiva regulamentação: "há mais 'não pode' do que 'pode'", dizem os reclamantes. Quanto à tradição, não há dúvida que os regulamentos devem ser mantidos, senão dentro de uma década haverá invernada artística de muito cetegê dançando o maçanico de saia justa e calça jeans.
Até a nossa vaneira, que não é nossa, é cubana, mas pertence aos nossos valores com seu padrão rítmico, já está contaminada por estilos alheios a ela por força dos mercadores culturais. Imaginem que virá por aí.
O rodeio crioulo, outro de nossos tradicionais valores, já mistura sertanejo, country, tourada, futeboi, permite a exibição de sons de alta potência sem nenhum compromisso com a sua festa e os seus valores. Tudo por dinheiro...
Há que reconhecer, para não sermos radicais, que o chimarrão evoluiu da chaleira preta para a garrafa térmica, do fogo-de-chão para o fogão ou fogareiro a gás ou elétrico. Adaptou-se para poder ser consumido por mais gente e mais rapidamente. Mas sempre haverá um galpão em alguma entidade tradicionalista de respeito, que manterá o fogo-de-chão fumegando e, junto às brasas, a velha chaleira preta, para que geração após geração a sociedade tome conhecimento da origem daqueles valores. Diante da fome mercantil de alguns maus conjuntos ditos gaúchos, é de se perguntar: a vaneira será preservada?
Gostaria também de recuperar algo em torno da expressão "tchê", também muito usada por conjuntos musicais que nem honram a expressão. O termo é indígena, se escreve originalmente "ché", com pronúncia fechada 'ê' e é um patrimônio lingüístico a ser preservado. Tanto que em várias regiões do sul do Brasil sua pronúncia é brasileiríssima ("xê"), sem a presença do sotaque castelhano. Aos mocinhos deturpadores, é preciso dizer: isso aqui não é onda "axé", que dá e passa.
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