Historicamente, o Rio Grande do Sul, estado ao extremo sul do Brasil, sempre foi uma região de conflitos e de culturas diversas. Numa área pertencente à Espanha pelo Tratado de Tordesilhas, alguns portugueses fincaram o pé em partes da localidade no intuito de tomar as terras dos espanhóis, mas esqueciam-se todos que os donos legítimos da terra eram os índios. Na prática, nunca houve divisão de fato dos territórios do pampa rio-grandense, pampa argentino e pampa uruguaio, proporcionando uma integração – nem sempre pacífica – entre os três povos. Do convívio entre os imigrantes espanhóis e portugueses com os índios surgiram muitas misturas raciais originando o que se chamou de “raça gaúcha” (cafuzos de índios je-tupi-guarani com ibero-europeus) e o surgimento involuntário de uma cultura completa que era compartilhada pelos povos.
Em conflito constante com os “castelhanos” (argentinos e uruguaios de ascendência castelhana) e com os portugueses (então colonizadores do Brasil), os gaúchos continuavam ignorando os limites políticos entre os territórios, mas criavam seu próprio isolamento cultural.
Na tentativa de não se identificarem nem com os portugueses (dominadores) e, posteriormente, brasileiros, nem com os espanhóis (invasores), os rio-grandenses criaram um modo particular de vestir, falar e agir, que pouco se diferenciava das características típicas dos “gauchos” (lê-se ‘gáutxos’ em espanhol) dos pampas cisplatino e platino. Os hábitos do churrasco, do chimarrão, da indumentária e quase toda a tradição permaneceram muito semelhantes após todo o período de ebulição, mas a língua foi diferenciando-se.
Numa tentativa de mostrar para os “castelhanos” que falavam português e para os “imperialistas” que falavam espanhol, adicionando-se muitas expressões indígenas e algumas africanas, surgiu uma linguagem híbrida, compreendida por todas as partes envolvidas no período, mas impossível de ser dominada por um “chucro”. Marcado pela grande ligação afetiva do gaúcho por seus animais, a maioria das expressões que se referem a animais, também se referem às pessoas.
A formação do dialeto se dá, basicamente, por:
vocábulos hispano-luso-indígenas
aumentativos e diminutivos hispânicos
escrita lusitana
pronúncia baseada no português, mas lida como no espanhol
falta de uma gramática oficial, mantendo o dialeto constantemente mutante e flexível
A pronúncia do “o” e do “e” são feitas como no Espanhol quando se alterariam para “u” e “i” no Português.
O diminutivo “inho” quase sempre e substituído por “ito”, mas há casos onde sobrevive. Recorde-se que não há regra oficial para a fala campeira e que a maioria das pessoas sequer sabem que não falam Português nem Espanhol.
O pronome “lhe”, quase sempre é pronunciado “le”.
Há uma grande dificuldade entre os nativos para saberem quando pronunciar “b” ou “v”, pois flutuam entre a gramática portuguesa e espanhola.
As palavras que têm dupla escrita de “x” ou “ch”, têm no “ch” sua escrita castelhana e “x” lusitana (galega).
Algumas expressões típicas da gauchada:
Abichornado – crioulo – acovardado, apequenado.
Afeitar – espanhol – fazer a barba
Âiga-te (âigale-te) – espanhol – interjeição de surpresa que enaltece o que foi ouvido; âigate.
A la pucha (a la putcha) – espanhol – interjeição de surpresa que enaltece o que foi ouvido; âigate.
Alcaide – provavelmente espanhol, pois tem significado muito oposto do homônimo português, oriundo do árabe – cavalo velho, ruim inútil; serve para pessoas também.
Andar a/pelo cabresto – português – o mesmo termo que designa a condução do animal, indica que alguém está sendo conduzido por outro.
Andar de rédea solta – português – também se referindo a pessoas, significa que alguém não sofre controle estrito de nada nem ninguém; um momento de folga.
Bagual – crioulo – cavalo que não foi castrado; homem.
Balaquear – crioulo – gabar-se, mentir, conversar fiado; vanguardar-se.
Barbaridade – português – barbarismo. Tanto adjetiva como pode ser uma interjeição de espanto.
Bate-coxa – português – baile, dança.
Bombacha – espanhol platino – peça (calça) que caracteriza a indumentária gaúcha. Tem origem turca e foi introduzida na América pelos comerciantes ingleses, de presença marcante no pampa platino.
Buenacho – espanhol – muito bom, excelente; bondoso, cavalheiro.
Campanha – português – planície rio-grandense; pampa.
Capilé – francês – refresco de verão, feita com um pouco de vinho tinto, água e muito açúcar.
Castelhano – espanhol – indivíduo oriundo de Uruguai ou Argentino
Cevador – português – pessoa que prepara o chimarrão e o distribui entre os que estão tomando.
Charque – espanhol platino – carne de gado, salgada em mantas.
Chasque – quíchua – mensageiro, estafeta.
Chiru (xiru) – tupi – índio velho, indivíduo de raça cabocla.
Chucro (xucro) – quíchua – animal arisco, nunca domado; pessoa de mesmo temperamento ou sem empirismo, inexperiente.
Cusco – espanhol platino, provavelmente já emprestado do quíchua – cachorro pequeno e de raça ordinária (ou sem); guaipeca.
De orelha em pé – português – da mesma forma que o animal de sobreaviso ergue as orelhas, tal supõe-se faça o homem.
Engasga-gato – português – ensopado feito com pedaços de charque da manta da barrigueira.
Garupa – francês - A parte superior do corpo das cavalgaduras que se estende do lombo aos quartos traseiros; também usado para definir a mesma área no corpo humano.
Gaúcho – origem desconhecida – termo, inicialmente, utilizado de forma pejorativa para descrever a cruza ibero-indígena, hoje é o gentílico de quem nasce no estado do Rio Grande do Sul.
Gauchada – crioulo – grande número de gaúchos; façanha típica de gaúcho, cometimento, muito arriscado, proeza no serviço campeiro, ação nobre, impressionante.
Gauderiar – espanhol platino – vagabundear, andar errante, sem ocupação séria; haragano.
Gaudério – espanhol platino – vagabundo, desocupado, nômade. Atualmente, é uma referência estadual ao povo da campanha, simplesmente, como gaúcho.
Guaiaca – quíchua – invenção gauchesca que se usa sobre o “cinturão europeu”. Significa bolsa em sua língua original.
Guaipeca – tupi – cachorro pequeno e de raça ordinária (ou sem), cusco.
Guri – tupi – criança, menino; serviçais que faziam trabalho leve nas estâncias.
Haragano – espanhol – Nômade, renitente; cavalo que dificilmente se deixa agarrar.
Japiraca – tupi – mulher de temperamento irascível, insuportável.
Jururu – tupi – triste, cabisbaixo, pensativo.
Macanudo – indicado como sendo espanhol platino – bom, superior, poderoso, forte, inteligente, belo rico, respeitável; um adjetivo positivo de uso genérico.
Mate – quíchua – bebida preparada em um porongo, com erva-mate e água quente; chimarrão.
Minuano – indicado como sendo espanhol platino – vento andino, frio e seco, que sopra do sudoeste no inverno.
Morocha – espanhol platino – moça morena, mestiça, mulata; rapariga de campanha.
Nativismo – português – amor pelo chão onde se nasce e sua tradição.
Orelhano (aurelhano) – espanhol platino – animal sem marca nem sinal; também serve para pessoas.
Pago – espanhol/português – lugar onde se nasceu. Como o gaúcho original era um nativo descendente de imigrantes e não pretendia deixar seu solo em hipótese alguma, o termo também designa, genericamente, a região da Campanha.
Pampa – quíchua – vastas planícies do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, coberta de excelentes pastagens que servem para criação de gado. Em quíchua, “pampa” significa “planície”.
Paisano – português/espanhol – patrício, amigo, camarada; camponês e não-militares.
Pêlo duro – espanhol – crioulo, genuinamente rio-grandense; também significa pessoa ou animal sem estirpe.
Poncho – origem incerta, araucano ou espanhol – espécie de capa de pano de lã de forma retangular, ovalada ou redonda, com uma abertura no centro, para a passagem da cabeça.
Puchero (putchero) – espanhol – sopão com muito vegetal e carne de peito, sem tutano e sem pirão.
Querência – espanhol – o lugar onde se vive. Derivado de “querer”, caracteriza o amor que o gaúcho tem pela sua terra.
Tapejara – tupi – vaqueano, guia ou prático dos caminhos; gaúcho perito, conhecedor da região.
Tchê – provavelmente espanhol – termo vocativo pelo qual se tratam os gaúchos. É o mesmo “che” (‘txê’) do espanhol, que se consagrou com Ernesto Guevara, o “Che”.
Topete – português/espanhol – audácia, arrogância, atrevimento; saliência da erva-mate que fica fora d’água na cuia de chimarrão.
Tropeiro – português/espanhol – condutor de tropas, de gado.
Abaixo, alguns trechos dos Contos Gauchescos, livro publicado em 1912 e que, apesar do tempo passado, permanece atual, pois a linguagem pampeana não se modificou muito ao longo dos anos, devido ao relativo isolamento. Perceba-se que quando Simões Lopes Neto escreveu, não fazia a mínima idéia de que narrava histórias em um dialeto e tenta adequar o texto à gramática brasileira da época.
“Ah! Esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino, um cusco mui esperto...”
Seguindo a regra do Espanhol, há “mui” e “muito”, utilizados nas mesmas condições do Espanhol. Contudo, essa é uma frase muito mais próxima do Português que a maioria das outras frases gaúchas, pois utiliza o verbo “esquecer” (mais usual “olvidar”) e o diminutivo “inho” (mais usual “ito”).
“Chinoca airosa,
Lindaça como o sol, fresca como uma rosa”
Tanto as desinências “oca” e “aça” quanto o adjetivo “airosa” são advindos do Espanhol, e utilizados largamente.
“Nisto, um aspa-torta, gaúcho mui andado no mundo e mitrado, puxou-me pela manga da japona...”
A ênclise utilizada pelo autor não visa a adequar-se ao português culto, até porque o livro é uma narrativa em primeira pessoa, mas retrata sua utilização natural pelo gaúcho.
“Cuê-pucha!... é bicho mau, o homem. Conte vancê as maldades que nós fazemos (...), nunca me esqueço dum caso que vi e que me ficou cá na lembrança e ficará té eu morrer”
O “vancê”, embora não esteja de acordo com a regra gramatical, indica a utilização dos pronomes pessoal (tu) e de tratamento (você) em situações claramente definidas, ao contrário do Português Brasileiro e de acordo com o Português Europeu e o Espanhol Castelhano.
Quando diz “que me ficou”, utiliza o pronome “me” onde, seguramente seria utilizado por um hispânico, e não o seria por um luso-brasileiro.
“O outro, o ruivo (...), vinha todo de preto, com um gabão de pano piloto (...) e de botas russilhonas, sem esporas”.
“Pela pinta devia ser mui maturrango.”
Ruivo, não corresponde ao “ruivo” do Português (cabelo avermelhado), mas ao “rubio” do Espanhol (loiro).
“E baixinho, fuzilando nos olhos, boquejou-me: - aquele é o imperador, se te enredas nas quartas, defumo-te”.
Novamente, o jogo de próclises e ênclises assentadas naturalmente pelos nativos e ignorados na língua falada brasileira.
“Desde 45, no Ponche Verde; fui eu que uma madrugada levei a vossa excelência um ofício reservado, pra sua mão própria... e tive que lanhar uns quantos baianos abelhudos que entenderam de me tomar o papel... Vossa excelência mandou-me dormir e comer na sua barraca, e no outro dia me regalou um picaço grande, mui lindo, que...”
“Regalou”, “picaço” e “mui lindo” sustenta a regra informal de orientação da linguagem falada no pampa.
Alguns versos da música “O Esquilador”:
“Quase um pesadelo arrepia o pelo
Do couro curtido do esquilador
Ao cambiar de sorte levou um cimbronaço
Ouvindo o compasso tocado a motor”
“Envidou os pagos numa só parada
"Trinta e três de espadas" mas perdeu todas de mão
Nesta vida guapa vivendo de inhapa
Vai voltar aos pagos para remoçar”
Bibliografia indicada:
Contos Gauchescos - LOPES NETO, Simões, L&PM, Porto Alegre, 1998.
Lendas do Sul - LOPES NETO, Simões, L&PM, Porto Alegre, 1998.
Vocabulário Pampeano - Pátria, Fogões e Legendas - Martins Livreiro Editor, 1987